30 junho, 2008

Mouras (des)encantadas no São João

Noite de São João – 23 de Junho



A noite de São João é uma nomeação cristão de uma tradição imemorial que assinala o solstício de Verão num exemplo de sincretismo religioso e cultural. Esta época do ano remete para um conjunto de crenças e tradições ancestrais que celebram a vida e a criação associada à terra e ao sol. De propriedades mágico-simbólicas milenares, esta noite é também conhecida pela particularidade de se puder aceder ao “Portal do Templo” que marca a ligação entre dois mundos, o material e o imaterial. Nesta medida, é a noite ideal para desencantar mouras. As mouras que por todo o Algarve estarão encantadas, numa situação ambígua entre o espírito e a matéria, em locais sugestivos como poços ou fontes, têm nesta noite especial a possibilidade de, mediante uma ajuda exterior que terá de cumprir um ritual pré-estabelecido, serem desencantadas e acederem ao mundo humano.
Esta magia decorre também da água, do facto de ser a atribuição simbólica da origem da vida e da bênção divina e das fontes e dos poços puderem também conduzir ao mundo subterrâneo onde se acredita existirem tesouros e maravilhas. Para além disso, a água à meia-noite de São João é benta e livra de feitiços. Aparece, portanto, com o seu significado simbólico reforçado.
Este aspecto do Maravilhoso que se pode assumir como um desregramento do quotidiano é “visível” em inúmeras histórias e lendas por todo o sul da Península e particularmente na região do Algarve, como no exemplo transcrito, como elemento de marca e interpretação da paisagem.



“As três filhas


Perto do ribeiro de Cacela Velha existia um bujanco (poço sem gargalo) onde um mouro encantou as suas três filhas, quando chegaram os cristãos a Cacela. Mais tarde partiu para a sua terra.
Passado algum tempo, o mouro encontrou um almocreve a vender azeite com o seu burro e perguntou-lhe donde vinha e ele disse que vinha de Cacela. O mouro perguntou-lhe se ele conhecia o bujanco que ficava perto das abas de uma oliveira junto ao ribeiro e ele disse-lhe que o conhecia muito bem. Então o mouro pediu-lhe para ele lhe desencantar as filhas que estavam encantadas no bujanco e ele disse-lhe que sim.
O mouro deu uma bolsa com três pães ao almocreve para na noite de São João à meia-noite lhe desencantar as filhas e depois pediu-lhe para ele saltar de costas por cima de um alguidar de barro cheio de água. O almocreve saltou por cima do alguidar e desapareceu. Mais tarde apareceu na sua casa, em Cacela. O homem pegou na bolsa com os três pães e guardou-a debaixo do poial dos cântaros não dizendo nada à mulher.
A mulher do almocreve, que era muito curiosa, ao ver a bolsa abriu-a, tirou um pão e começou a cortá-lo, mas ao ouvir um grito, assustou-se e abandonou o pão.
Na noite de S. João, à meia-noite, o almocreve foi ao poço desencantar as mouras. Quando lá chegou lançou o primeiro pão e desencantou a primeira moura, depois lançou o segundo pão e desencantou a segunda e por fim lançou o terceiro pão e do fundo do bujanco ouviu-se uma voz que lhe disse:
- Não me dás desencantada porque tenho eu uma perna corta.
E ali ficou encantada no bujanco, até aos dias de hoje.

Passei pela rua das gulosas deram-me um pratinho de conquilhas.
Passei pela rua das mentirosas tornou-se tudo em mentiras.
E assim acabou a lenda…”



Contada por João Filipe Sol Pereira (nascido em 1985), em Santa Rita, Vila Nova de Cacela




Mourinhos e Mouras Encantadas em Cacela
Recolhas de Maria Emília Fernandes
Edição da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António e do Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela
2007

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