19 dezembro, 2009

Algarve

“O Algarve, para mim, é sempre um dia de férias na pátria. (…)
A brancura dos corpos e das almas, a limpeza das casas e das ruas, e a harmonia dos seres e da paisagem lavam-se da fuligem que se me agarrou aos ossos e clarificam as courelas encardidas que trago no coração. (…) A terra não hostiliza os pés, o mar não cansa os ouvidos, o frio não entorpece os membros, e os frutos são doces e sempre à altura da mão. (…)
Moiros encantados numa moirama sem areais, vivem da graça que só a raros sítios do mundo a natureza concedeu. Os caminhos não têm abismos, não há fragas estéreis e agressivas, não se vê outra neve a não ser a das corolas abertas, e as fainas do mar são tão lúdicas como as da terra. (…)
Ainda mais acolhedora do que o dia, a noite apaga todas as contradições. E, coberta por um manto de estrelas dum resplendor de festa, a alma, em vez de adormecer como de costume, sonha.
Pela manhã, passada a embriaguez, a razão alarma-se e protesta. É impossivel que tudo seja tão doirado e perfeito! Há-de por força haver uma realidade mais dura por detrás do biombo! Os sentidos mentiram. Deixaram-se embebedar pelo vinho capitoso das aparências. (…)
Não, eu não consigo ver o Algarve senão como a miragem dum céu deste mundo, sem nenhum dos atavios que alvitam a condição dum céu. A ideia que tenho dum paraíso terrestre, onde o homem possa viver feliz ao natural, vem-me dali. Casas cujos telhados, nem de colmo, nem de lousa, sejam açoteias de harém para um amor livre e espontâneo ao luar; gente que se não cubra de croças nem de pelicos, mas ponha a sombra preguiçosa dum guarda-sol sobre a quentura do corpo; e figueiras pequeninas, anãs, sem toco, onde nenhum Judas se possa enforcar de remorsos. Um paraíso em que a maceração cristã não entre de maneira nenhuma.”


Miguel Torga, “O Algarve”, in Portugal, pp.93-96

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