26 abril, 2007

«Os medos!» Tradição popular

«Os Medos» - É o medo que gera os « medos»!



(...) «Os medos surgem como nome genérico que designa tudo o que «aparece», seja impressionando a visão, a audição ou a sensibilidade cutânea, produzindo no indivíduo atingido a sensação de um fenómeno extraordinário.»
«As almas do outro mundo» são considerados os «medos» mais inofensivos. Ligadas ao mistério da morte, provocam arrepios, cabelos em pé, medo afinal, em função do desconhecido e do «respeito» e não propriamente do receio do mal que delas advenha. Pelo contrário, é sabido que «as almas do outro mundo» «aparecem» sob vários aspectos e formas para pedirem o pagamento de promessas ou a reposição da verdade sobre os mais variados assuntos. Encontram-se em situação de fragilidade, necessitam ainda do auxílio dos vivos para o seu sossego final.
Os outros «medos» são mais temidos, porque bruxedos ou feitiçarias.
São os lobisomens, capazes de transportarem as pessoas sem destino. São as bruxas nas encruzilhadas dançando, dançando até darem um estoiro… São «as coisas ruins» de feitiçaria para este homem se ligar a esta mulher ou aquela mulher se esquecer deste homem. São invejas, são maldades. São doenças e padecimentos. É a loucura. São «os ataques» e «os sintomas» …
As bruxas actuariam a partir de si mesmas com «artes» da sua própria natureza ou fado, podendo nada lucrar com os actos praticados.
A feitiçaria, pelo contrário, tem carga mercenária e por isso mesmo ainda mais temida. Usa esconjuros e substâncias do corpo da vítima ou que transportadas por ela são susceptíveis de alterar comportamentos e acontecimentos consigo relacionados.
A feitiçaria pode ser praticada por qualquer pessoa por qualquer pessoa mal formada que movida por ódio ou maus instintos queira prejudicar alguém, servindo-se de «coisas ruins». Essas pessoas fazem o mal mas não alteram aparentemente o seu viver quotidiano, por tal motivo são difíceis de identificar…
As curandeiras ou curandeiros, que são agentes de magia positiva, suscitam «respeito» mas não originam medo porque utilizam palavras benéficas ao reequilíbrio do que foi desviado da normalidade por forças negativas através de más palavras ou acções, quer se trate de restituir o marido à mulher, o cordão de oiro roubado, a saúde ao doente, a água nascente, sem, em contrapartida, exercer vingança ou castigo no causador do mal.
Luzes, suspiros, sopros, música, vultos brancos são «medos» identificados com «almas do outro mundo».
Estrondos, uivos, patadas, murros, labaredas, guinchos, vultos negros, sapos de olhos cosidos, «mirras», «rafolhões de cabelos», são sinais de bruxedo ou feitiçaria.
Encontrar rolos de cabelo de mulher nas encruzilhadas não é «um medo» porém sendo sinal de feitiços «mal que alguém fez», gera horror pela ligação em triângulo feitiço-mulher-cabelo, simbolizando este, a corda com a qual se amarra quem não deseja ser amarrado.”






Este texto de Um Algarve Outro – Contado de Boca em Boca revela a existência de determinadas superstições e receios, denominados “os medos”, marcados no imaginário popular que atingem por vezes a dimensão do “real”.
Esta obra que se inscreve no âmbito da Antropologia Cultural consiste numa recolha de estórias, mezinhas, receitas culinárias tradicionais, diversos costumes e ditos, devoções e superstições da serra de Monchique realizada pela autora, organizada por meses do ano, correspondendo a cada mês um capítulo. O discurso é construído numa linguagem simples e fluída que transporta as marcas de oralidade do processo de recolha recriando o som e a musicalidade de alguns ditos como se vê, por exemplo, no título de cada mês. Neste caso o mês de Abril que se inicia com o seguinte titulo: “Abril, Mabril, Mês d’ Abril…” um dito, ou uma forma de nomeação, popular.
Com este trabalho procura-se fazer “uma ponte de ligação entre a memória do tempo e o tempo actual” priveligiando o saber ancestral e tradicional das comunidades daquele concelho, revelando ao leitor, como uma passagem de testemunho, um património cultural valioso que muitas vezes é esquecido ou relegado para segundo plano, mas que é essencial do ponto de vista da persistência da memória e construção de identidade (s).




O texto transcrito pertence a MARREIROS, Glória, Um Algarve Outro – Contado de boca em boca, Livros Horizonte, Vila de Monchique, 2ª edição 1999, p.96-97

A citação acima transcrita pertence à autora na introdução aquele trabalho e pode ler-se na página 15.

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