Oh meu ardente Algarve impressionista e mole,
Meu lindo preguiçoso adormecido ao sol,
Meu louco sonhador a respirar quimeras,
Ouvindo, no azul, o canto das esferas
- A marcha triunfal dos mundos pelo ar. –
Para te adormecer, Deus pôs-te perto o mar,
E, para fecundar a tua fantasia,
No vasto palco azul, erguido nos espaços,
Fez mais belo para ti o drama em oiro – o Dia,
E deu, pra te abraçar, à luz, mais fortes braços.
Romântico torrão de doidas fantasias,
Namorado gentil, sensual e troveiro,
Onde o luar se orquestra em novas harmonias
E faz de neve em vez das neves de Janeiro…
Terra doirada, aonde as tardes caem mansas,
Como verga uma flor na haste delicada,
E onde os lírios são amigos das crianças
Numa amizade sã, divina, imaculada,
Algarve, onde os perfis, romanescos, dolentes,
Têm um ar de sonho e de fadiga mole,
E parecem abrir-se em curvas indolentes,
Como flores também, ao palpitar do Sol…
Campos de um verde álacre, onde zumbem as cores,
Onde transborda a seiva, alegres e felizes:
Sentem-se germinar as raízes e flores,
Na luxúria de Luz dos tropicais países.
Às tardes, cada monte eleva-se sereno,
Na fluida limpidez dos poentes de rosa,
E a paisagem tem um distender ameno
De mulher sensual, fecunda e preguiçosa.
Algarve das paixões, do amor violento,
Que fana, quando passa, as bocas, de desejos;
Aromática terra, onde a asa do vento,
Em vez de ser de ferro, é branda como os beijos…
Terra dos figueirais e das vinhas Formosas
Do luar novelesco, embriagante, albente,
Onde o Sol sensual cansa os nervos das rosas,
Numa volúpia de oiro intensa, absorvente…
Algarve do morghot, dos rostos escondidos,
Das lendas, das visões, das moiras encantadas!
Onde as línguas do Ar murmuram aos ouvidos
Com vocáb`los de sonho, as histórias de fadas…
Encantado jardim fremente de matizes,
Onde a cor dá concerto em sinfonias de oiro,
E onde, sob o solo, as ávidas raízes
Vão às vezes tocar nalgum velho tesoiro…
Costas do meu Algarve, onde é tão terno o mar,
Dum veemente azul em ritmos de veludo,
Com neblinas de prata, ao nascer do luar,
Espumantes de luz, quando o sol cobre tudo…
Costas azuis de sonho, onde os navios parecem
Lírios que vão boiando e voando serenos,
E as velas, correndo, ao longe se esmaecem
E semelham, assim, uns malmequeres pequenos…
Canta suavemente a água, sob as quilhas,
Com um vago rumor, cetinosa e azul,
As líquidas canções, as finas baladilhas
Deste mar sonhador, do meigo mar do Sul.
Como to és diferente, oh mar doce e saudoso,
Oh mar do meu Algarve, enternecido mar,
Do sinistro oceano escuro e ardiloso
Que esmaga os navios para os poder roubar!
Tu nunca, como ele, assassinaste, rindo,
Noivos a viajar, poetas, marinhagem,
Que sonham no convés, quando o luar, subindo,
Risca em prata na água o sulco da viajem…
Tu vais cantar de noite à beira dos moinhos,
Das colinas, dos cais, das praias murmurosas,
Para embalar o sono às aves nos seus ninhos
E para destruir a insónia das rosas…
Quando perto de ti as namoradas choram,
Meu belo aventureiro azul, vais consolá-las;
Por isso, lindo mar, elas tanto te adoram:
Abrem-te o coração, sempre que tu lhes falas…
Tu vais adormecer sobre o barco, cantando,
O pobre pescador cansado de remar…
Pra poderes tornar o seu mais brando;
Nem o barco, sequer, lhe fazes oscilar…
Tu vais fazer vibrar as pequeninas ilhas,
Emergindo de ti, brancas, silenciosas,
Na melodia azul das vagas e das quilhas
E das velas correndo, alvas e luminosas.
Vais fazer latejar, numa glauca harmonia,
As rochas junto a ti erguidas e soldadas,
Meu lindo mar do Sul, oh mar da Fantasia,
Da Aventura, do Amor, da Lenda e das Baladas!
Luar do meu Algarve, imaculado e fino,
Luar fluido, de neve, opalas e jasmins,
Romântico luar, transparente e divino,
Que inundas de Quimera as áleas dos jardins.
Cetinoso luar, querido dos marinheiros,
Luar sentimental do sonho e dos amores,
Que nevas com a luz a água dos ribeiros
E dos lagos azuis deitados entre flores.
Tu vais tecer, de leve, em brancas musselinas,
A baías, o mar: entulhá-los de estrelas;
Romantizas os cais, as ilhas, as colinas,
As curvas dos perfis, o voo ágil das velas.
Vais rolar, sobre a serra e nos vales floridos,
O teu alvo fulgor de mármore e de arminhos:
Tornas os corações bons e compadecidos,
Idílicos; o campo, as estradas, os ninhos…
Negrejantes pinhais vivendo à beira-mar,
Vales sorvendo luz, colinas maceradas,
Silenciosos navios ao longe a navegar
Sobre o trémulo seio das águas desmaiadas.
Toca-vos o clarão evocador da lua
E tendes logo o ar dum sonho desenhado,
Como um fluido véu por sobre vós flutua
Esse pólen da luz, que os mundos tem criado…
Oh sol, vibrante sol, do meu Algarve de oiro,
Que fazes palpitar os peitos e os jardins
No mesmo grande amor, fecundo, imorredoiro,
Que rebenta, na Vida, em olhos e jasmins:
Oh sol que pões no Céu um brilho violento
E fazes chamejar, ao longe, os horizontes;
Que pões fogo no ar e pões brasas no vento
E que vais calcinar a epiderme aos montes:
Adoro a tua luz vigorosa e sadia,
Que moldura no campo a música das cores,
Que rega, em nossa alma, os cactos da Alegria
E esculpe na semente os bustos das flores:
Cai-me sobre o olhar: banha-me em teu fulgor,
Oh sol que pões no Céu um latejante azul:
Dá-me a tua alegria e dá-me o teu vigor,
Oh sol, imortal sol, do meu país do Sul…
Manhãs do meu Algarve, auroras grandiosas,
Abrindo pelo Céu girândolas de cores,
Feitas de seda e oiro e mármores e rosas,
Acordando de manso as sonolentas flores!
V`luptuosas manhãs triunfais e supremas,
Em que o ar não tem mancha, a luz não tem algemas!
Auroras que deixais as montanhas eztáticas,
No triunfal fulgor com que ides inundá-las:
Deslumbrantes manhãs intensas e dramáticas,
Dilúvios de rubis e liquidas opalas!
Plo ar imaculado o vosso oiro palpita,
Como um pólen de luz celeste e fecundante,
Que vem tornar a terra a santa mãe bendita,
Que, sob os astros, gera a vida, a cada instante.
Oh manhãs sobre o mar, vossa frescura trago-a
Dentro do coração e na curva do olhar!
Manhãs, que pareceis incêndios sobre a água,
Quem me dera um pincel pra vos poder pintar!
Oh mar, oh sol, oh noites transparentes,
Campos a burbulhar a seiva que os invade,
Horizontes sem mancha, alvoradas ardentes,
Olhos frescos de amor ensinando a saudade,
Eu amo a vossa cor, o vosso brilho forte,
A fecunda alegria que de vós se evapora;
Detesto a palidez que cobre os céus do norte,
Onde a Cor se desbota e onde a Luz se descora.
Frio encanto polar das montanhas geladas,
Com um sinistro alvor de sepulcral luar,
Alva graça mortal das campinas nevadas,
Que a natureza fez para o cinzel imitar:
O vosso encanto é um encanto de morte,
Vossa beleza é a paralisação:
Oh arte glacial das regiões do norte
Não fazes palpitar jamais o coração!
Natureza imortal, tu que soubeste dar
Ao meu país do sul a larga fantasia,
Que ensinaste aqui as almas a sonhar
Nessa frescura sã da crença e da alegria:
Que inundaste de azul e mergulhaste em oiro
Esta suave terra heróica dos amores,
Que lançaste sobre ela o canto imorredoiro
Que vibra a sinfonia oriental das cores:
Tu que mostraste aqui mais do que em toda a parte
O intenso poder do teu génio fecundo,
Que fizeste este Céu para inspirar a Arte
E lhe deste por isso o melhor sol do mundo:
Ensina algum pintor a fixar nas telas
Este brilho, esta cor, inéditos, diversos,
E põe a mesma luz que chove das estrelas
Na pena que debuxa estes humildes versos.
João Lúcio nasceu em 1880 em Olhão, onde regressou após uma estadia em Coimbra onde se formou em direito, tornando-se um dos mais famosos advogados da região. À da sua faceta profissional afirma-se também como poeta, músico e pintor. Pintor sobretudo da imaginação e da fantasia patente nos seus versos.
Embora quase esquecido no grande centro da renascença portuguesa, devido sobretudo ao seu afastamento físico, é pela sua obra, um dos grandes vultos da Modernidade poética que procurava afirmar-se em Portugal. Tendo colaborado, por exemplo, na revista “A Águia” em 1913, onde germinou a poesia saudosista.
As suas obras Descendo (1901); O Meu Algarve (1905); Na Asa do Sonho (1913) são sublimes imagens de uma admirável poesia abstracta e metafísica e os seus versos são quadros pintados com uma “ardência imaginativa, um sentido de mobilidade do mundo e das suas formas, uma ideia de transmutação e de metamorfose transfiguradora”, formando jogos de cor (es) e luz (es) que vão descobrindo, revelando e construindo uma realidade onírica, mas exuberante e viva.
O Meu Algarve, o poema e o livro constituem aspectos de uma realidade, cuja imaginação e fantasia simbolista e transfiguradora do autor elevam à expressão da sua sobrenaturalidade.
Este seu impulso sonhador e criativo traduz-se também na construção, em 1916, do conhecido Chalé João Lúcio na sua quinta de Marim, magnifico exemplar da arquitectura simbolista.
O poeta morre em 1918 vítima da pneumónica que assolou o Algarve. A sua obra, pelo significado que tem para a literatura portuguesa e para o património histórico-cultural da região e do país, merece ser divulgada e reabilitada.
Embora quase esquecido no grande centro da renascença portuguesa, devido sobretudo ao seu afastamento físico, é pela sua obra, um dos grandes vultos da Modernidade poética que procurava afirmar-se em Portugal. Tendo colaborado, por exemplo, na revista “A Águia” em 1913, onde germinou a poesia saudosista.
As suas obras Descendo (1901); O Meu Algarve (1905); Na Asa do Sonho (1913) são sublimes imagens de uma admirável poesia abstracta e metafísica e os seus versos são quadros pintados com uma “ardência imaginativa, um sentido de mobilidade do mundo e das suas formas, uma ideia de transmutação e de metamorfose transfiguradora”, formando jogos de cor (es) e luz (es) que vão descobrindo, revelando e construindo uma realidade onírica, mas exuberante e viva.
O Meu Algarve, o poema e o livro constituem aspectos de uma realidade, cuja imaginação e fantasia simbolista e transfiguradora do autor elevam à expressão da sua sobrenaturalidade.
Este seu impulso sonhador e criativo traduz-se também na construção, em 1916, do conhecido Chalé João Lúcio na sua quinta de Marim, magnifico exemplar da arquitectura simbolista.
O poeta morre em 1918 vítima da pneumónica que assolou o Algarve. A sua obra, pelo significado que tem para a literatura portuguesa e para o património histórico-cultural da região e do país, merece ser divulgada e reabilitada.
O poema transcrito pertence à obra com o mesmo nome, O Meu Algarve, editada em Lisboa, 1905, pela Livraria Editora Viúva Tavares Cardoso. A edição consultada, João Lúcio Poesias Completas, é organizada e prefaciada por António Cândido Franco, e editada pela Imprensa Nacional Casa da Moeda em Lisboa, 2002. O fragmento que se encontra entre aspas pertence ao prefácio acima referido ma pág. 17.
1 comentário:
Independência para o Algarve! Já!
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